Neste primeiro
de abril, ironicamente dia da mentira, nós brasileiros nos deparamos com uma
dura verdade do passado: estamos à beira do meio século do Golpe Militar de
1964. Que este processo custou caro a toda estrutura institucional do Estado
nacional, todos sabemos. Sabemos também que, durante aqueles 21 longos anos,
foram garantidos e perpetuados muitos dos monopólios (latifundiário, midiático,
jurídico, etc) que ainda hoje vigoram nas mãos de potentados políticos e
econômicos. Entretanto, é interessante pontuar que qualquer regime totalitário
traz consigo as marcas da sociedade que governa e da qual é também um reflexo,
neste caso, a herança de 1964 persiste de maneira forte e evidente nas fileiras
do Estado e da sociedade (des) organizada.
As tenebrosas bodas de ouro que
estão por vir no próximo ano revelam um casamento duradouro que teve,
voluntária e involuntariamente, o claro apoio testemunhal da sociedade, como
por exemplo, na Marcha da Família com Deus pela Liberdade (março de 1964).
Certamente o Golpe não foi desencadeado apenas pelas hostes conservadoras que
lotaram as ruas do Brasil em uma cega oposição a Jango. Por outro lado, culpar
uma cúpula de militares pelo Golpe é um ponto de vista no mínimo reducionista.
Para
além destes fatores e de toda a conjuntura geopolítica da década de 1960,
cumpre analisar historicamente nossa formação social e política, para que
possamos perceber que somos fruto de um longo processo de colonização, baseado
no uso da escravidão, da força patriarcal, da inquisição, da conversão forçada,
da censura intelectual e do genocídio daqueles grupos que hoje cognominamos
“minorias”.
Neste
sentido, nenhuma ditadura, nenhuma democracia, nenhum regime político deve ser
entendido como uma geração espontânea ou uma vontade divina (por mais que
muitos pensem assim). No caso da ditadura brasileira, podemos citar vários
exemplos de um universo valorativo próprio a uma sociedade outrora (?) colonizada
e excessivamente despolitizada, valores que não foram inventados em 1964, mas
foram perpetuados por um bom tempo a partir daquele fatídico ano: a excessiva
centralização das deliberações que grassa nas instituições brasileiras – dos
supremos às associações de bairro; o descaso com os menos favorecidos
socialmente e economicamente; a censura que continua travestida de espetáculos
midiáticos dignos do Coliseu; a forte e danosa presença da religião no Estado;
a homofobia; a misoginia; o machismo; e muitos outros males que nos assolam.
Por
fim, torna-se uma tarefa difícil digerir todo esse processo onde se descortinam
algumas das faces dos verdadeiros “donos do poder”. Torna-se uma tarefa ingrata
perceber que as estruturas políticas do nosso Estado nacional estão arraigadas
no comportamento da maioria da população, torna-se estafante perceber que essa
lástima histórica é legitimada, quer queira quer não, por um comportamento
cultural. Quando, por um minuto de contemplação, paramos para pensar sobre o
problema, aparece a imagem do espectro ditatorial sentado na sua cadeira de
balanço. Um espectro de séculos, refletido por todos os lados e que em um ano
completará meio século do seu casamento com Estado e sociedade. Casamento esse
que, apesar da abertura lenta e gradual, continua em uma aliança ungida com um
grande cale-se de sangue.
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